TAMAR by Thomas Mann
O QUARTO
Uma mulher sentava-se ao pé de Jacó, sabedor de muitas histórias, no bosque de Mambre situado nas imediações de Hebron, no país de Canaã. Muitas vezes essa mulher ficava sentada a seus pés — ora na “casa de pelo”, perto da entrada, no próprio lugar onde certa vez o pai conversara com o seu predileto que acabara induzindo-o a dar-lhe a túnica de várias cores; ora debaixo da árvore da instrução; ora ao bocal do poço que ficava próximo e onde logo no começo fomos encontrar o arguto adolescente sob a Lua e vimos como o pai o espiava, cheio de preocupações, arrimado a um bordão. Como é que essa mulher se assenta junto dele, já num lugar já noutro, com o rosto levantado para o do patriarca, a ouvir suas palavras? De onde vem ela, essa jovem séria tantas vezes encontrada a seus pés, e que espécie de mulher é?
Seu nome era Tamar. — Circunvagamos a vista pelos semblantes de nossos ouvintes e só num ou noutro descobrimos o clarão do conhecimento. E bem visível que a grande maioria daqueles que estão aqui para saber as exatas circunstâncias desta história não recorda ou talvez desconhece os fatos tais quais se passaram. Deveríamos censurá-los por isso, se a ignorância comum, clamando pelo narrador, não viesse encarecer a importância da sua tarefa. Com que então já não sabeis ou, que vos lembre, nunca soubestes quem foi Tamar? Em primeiro lugar, ela era, nem mais nem menos, uma mulher cananeia, Fm segundo lugar, era a mulher de um neto de Jacó, nora de Judá, quarto filho do patriarca, e portanto, por uma espécie de afinidade, neta do abençoado. Em terceiro lugar era uma afetiva discípula de Jacó, homem profundamente versado nas coisas do mundo e nas de Deus, discípula que lhe pendia dos lábios e olhava para a sua solene
fisionomia com uma atenção tão reverente que, por sua vez, o peito do
consternado ancião se lhe abria inteiramente, chegando ele a sentir-se até
um pouquinho enamorado dela.
É que na natureza de Tamar havia uma mistura estranha: numa parte do
seu ser ela era austera e cheia de ambição espiritual (a que mais tarde
teremos de dar uma designação mais forte), mas na outra possuía os
misteriosos encantos físicos e morais de Astarte. É notória a impressão que
uma mistura destas faz num homem e até que idade provecta isso pode
estender-se quando, como Jacó, esse homem cede às suas emoções e as
enobrece.
Após a morte de José, ou melhor, em razão desse doloroso
acontecimento, que o velho a princípio parecia incapaz de aceitar, a
majestade pessoal de Jacó não fez mais que crescer. Uma vez que se
acostumou com o fato e sua contenda com Deus esmoreceu, tendo a cruel
disposição desse Deus achado o caminho para penetrar naquele espírito que
a princípio se lhe mostrara tão obstinadamente esquivo, essa disposição
divina converteu-se em enriquecimento da sua vida, em acréscimo do seu
opulento caudal de história. Em virtude disso o seu cismar — quando Jacó a
ele se entregava — tornava-se mais expressivo, mais pitoresco do que
nunca, chegando a incutir em quem o via um temor reverenciai, tanto que
diziam uns aos outros: “Israel medita nos seus contos!” E bem verdade que
a expressão faz a impressão. As duas andaram sempre juntas e é provável
que uma tenha sempre trazido de olho a outra. Não é coisa de riso se a
expressão tem atrás de si não mero embuste mas experiência real da vida e
um fardo de contos. Em tal caso o máximo que podemos fazer é sorrir
respeitosamente.
Tamar, a jovem do país, nem sequer conhecia um tal sorriso. Ficou
profundamente impressionada com a majestade de Jacó assim que se
aproximou dele, e isso não se deu apenas por intermédio de Judá, quarto
filho de Lia, e dos filhos dele, dois dos quais ela desposou um depois do
outro. Tudo isto sabemos, sendo também do nosso conhecimento as
sinistras e um tanto equívocas circunstâncias que acompanharam esses
casamentos, em outras palavras, a morte dos dois filhos de Judá. O que não
é conhecido, uma vez que a crônica o passa por alto, é a relação entre
Tamar e Jacó, embora seja ela o pressuposto de todo o episódio que forma
uma notável ação secundária dentro da nossa história, e que intercalamos
aqui, enquanto ao mesmo tempo percebemos que essa história (que se
poderá chamar sedutora, visto como nos seduz a ponto de não descurarmos
nenhum detalhe dela), a história de José e seus irmãos, já é em si uma
graciosa interpolação numa epopeia de proporções extremamente vastas.
Tamar, a jovem do país, filha de simples lavradores de Baal, movendose
dentro deste episódio de um episódio — teve ideia do fato?
A resposta é: ela certamente a teve. Seu procedimento, que foi
extraordinariamente sério, imponente e escandaloso ao mesmo tempo, é
uma prova do fato. Não foi sem motivo que empregamos há pouco a
palavra “interpolação”. Esta palavra insiste em voltar-nos ao bico da pena,
como se fosse dotada de vontade própria; quer-se introduzir; forma o
motivo da hora, é o santo e senha, a mola real de Tamar. Ela dispôs-se a
entrar na grande história e conseguiu-o, graças à sua admirável força de
vontade. Essa história era o cenário mais vasto de que ela, por intermédio
de Jacó, teve notícia e não quis, por nenhum preço, ficar excluída dela.
Parece-nos que há pouco nos escapou também a palavra “sedução”. Não foi
sem motivo. Aí está outra palavra importante, porque foi pela sedução que
Tamar logrou penetrar na grande história de que esta é um episódio. Fez-se
tentadora e incidentemente até se prostituiu, tudo para não se ver excluída;
rebaixou-se sem medir as consequências do seu aviltamento, a fim de ser
exaltada... E isto como se deu?
Ninguém sabe com precisão quando e por que prosaico acaso foi que
Tamar teve acesso junto do amigo de Deus, tornando-se uma sua discípula
tão devota. Isto talvez tenha acontecido antes da morte de José, sendo
provável que ela tenha entrado na tribo por disposição de Jacó, desposando
o jovem Her, filho mais velho de Judá. Mas as relações entre ela e o velho
só se estreitaram depois do tremendo golpe e depois da demorada e
involuntária cura de Jacó, quando seu coração vazio inconscientemente
procurava quem o enchesse de algum novo afeto. Só então passou a prestar
atenção em Tamar e atraiu-a a si, notando a admiração que a jovem por ele
sentia.
Por essa época seus onze filhos estavam quase todos casados, os mais
velhos havia muito, os últimos mais recentemente, tendo filhos de suas
mulheres. Até a vez de Benoni-Benjamim, o filhinho da morte, chegou. Mal
saíra ele da meninice, atingira a adolescência e depois a idade viril, talvez
sete anos após a perda de seu irmão, Jacó pediu para ele primeiro a mão de
Maalia, filha de um tal Aram, de quem se disse ser “neto de Tara”,
descendendo assim, fosse como fosse, de Abraão ou de algum irmão seu, e
depois a da donzela Arbath, filha de um homem de nome Simron, chamado
explicitamente “filho de Abraão”, o que pode significar ter ele saído desse
tronco por via de alguma concubina. Pelo que diz respeito à genealogia das
noras de Jacó, a história tem procurado paliar e fantasiar muita coisa, no afã
de mostrar o parentesco de sangue da raça sacerdotal, embora recorrendo a
afirmações gratuitas e nem sequer o fazendo em todos os casos. As
mulheres de Levi e de Issacar são consideradas "netas de Eber" e talvez o
fossem; ainda assim, podem ter vindo de Assur ou de Elam. Gad e o ágil
Neftali, seguindo o exemplo paterno, casaram com mulheres de Haran na
mesopotâmia, mas que eram realmente bisnetas de Naor, tio de Abraão, não
foram elas que afirmaram, foram outros. Azer, o amigo de gulodices, tomou
para esposa uma donzela trigueira da raça de Ismael. Foi, em todo caso, um
parentesco, apesar de duvidoso. Zabulon, apesar de finar-se pelas coisas da
Fenícia, escolheu uma madianita. Isso aliás só tinha razão de ser sendo
Madian filho de Ketura, segunda mulher de Abraão. Mas já não havia o
imenso Rubem ou bem ou mal casado com uma mulher cananeia? O
mesmo acontecera com Judá, como sabemos, e com Simeão, porquanto a
sua Buna tinha sido furtada de Siquém. Quanto a Dan, filho de Bala, ao
qual chamavam serpente e víbora, é notório que sua mulher era uma
moabita, descendente daquele Moab, que a filha mais velha de Lot gerara
com seu próprio pai, dando à luz o seu próprio irmão. Nada edificante, é
claro, e tampouco garantia da pureza do sangue, porque Lot não era irmão
mas apenas prosélito de Abraão. De Adão foi ele, sem dúvida, descendente
e também de Sem, pois que veio do país dos dois rios. E sempre possível
demonstrar a unidade de sangue, uma vez que se remonte bastante longe no
passado.
Assim todos os filhos “trouxeram suas mulheres para a casa de seu pai”,
segundo lemos; em outras palavras, o local da tribo no bosque de Mambre,
perto de Kirjat Arba e do terreno comprado para a sepultura da estirpe nas
imediações da casa de pelo de Jacó, cada vez se alargava mais; à medida
que os dias se passavam, os descendentes, conforme a promessa, pululavam
em volta dos joelhos de Jacó, sempre que o nobre ancião o consentia, e na
sua bondade o consentia de vez em quando, acariciando então os seus netos.
Fazia isso especialmente com os filhos de Benjamim. Turturra, homenzinho
atarracado que tinha ainda os mesmos olhos cinzentos e bondosos e usava
um penteado alto que lembrava um capacete metálico, tornara-se pai de
cinco filhos que lhe foram nascendo em rápida sucessão, gerados de sua
mulher aramaica, e entrementes de outros pequerruchos que lhe dera a filha
de Simron. Os netos de Raquel eram sempre os favoritos de Jacó. Mas,
apesar de sua presença e da dignidade paterna de Benoni, Jacó ainda tratava
seu filho mais moço como se fosse criança, trazendo-o à rédea curta como
se ele já não fosse pai de vários filhos e dando-lhe pouca liberdade de
movimentos, com medo de que lhe sucedesse alguma desgraça. Ao único
penhor que lhe restara do amor de Raquel mal consentia que fosse até a
cidade de Hebron, até os campos, e não lhe viessem falar nalguma excursão
do irmão de José pelo interior do país. Assim procedia o velho, ainda que
estivesse longe de dedicar a Benoni o afeto que nutrira para com José e
embora não houvesse razão positiva para temer o ciúme dos poderes do alto
em relação a esse filho. Todavia, desde que o amado fora vítima dos
colmilhos do porco, Benoni ficara sendo o único tesouro dos cuidados e da
preocupação de Jacó, e por isso não o perdia de vista e não deixava passar
hora do dia sem saber onde estava Benjamim e que estava fazendo. Essa
fiscalização inflexível não podia deixar de ser incômoda para Benjamim,
vindo ferir a sua dignidade de marido e de pai. Contudo, aguentava-a,
apesar de constrangido, e apresentava-se ao pai várias vezes por dia em
obediência a esse capricho do velho, porque, se o não fazia, lá vinha o
próprio Jacó a sua procura, apoiado no seu bordão e a coxear — embora,
como Benjamim bem sabia e como ficava bem patente do ambíguo
proceder do ancião, os sentimentos de Jacó estivessem muito divididos,
formando uma extravagante mistura de rancor oculto e senso de
propriedade. É que no fundo ele nunca deixara de ver em Benoni o
matricida, o instrumento de que Deus se servira para privá-lo de Raquel.
Outra importante vantagem ainda, além da de ser o mais moço, tinha
Benoni sobre os seus irmãos vivos; e para a mentalidade cismadora de Jacó,
sempre pronta a arquitetar associações de ideias, essa vantagem formava
mais uma razão para ele conservar sempre ao pé de si o mais novo. E que
Benjamim estivera em casa quando José se perdeu no mundo, e, como
conhecemos Jacó, essa equivalência entre estar em casa e ser inocente, não
tendo absolutamente arte alguma no crime que cometido fora, estava
simbolicamente alojada no seu espírito. Destarte Benjamim devia achar-se
sempre presente ali como um sinal vivo e permanente da sua
inculpabilidade e do fato de que só ele, o mais moço, não estava sob a
suspeita contínua e caladamente toar que, com razão, ainda que num sentido
errado, Jacó alimentava no íntimo e que os outros bem sabiam que ele
alimentava. Era a suspeita de que o javali que havia despedaçado José fora
uma fera de dez cabeças, e Benjamim tinha de ficar em casa” para indicar
que o animal positivamente não era de onze cabeças.
Mas talvez nem de dez cabeças fosse. Só Deus o sabia, e não fazia mal
que Ele guardasse consigo o segredo. Na verdade, à medida que se
escoavam os dias, a questão ia perdendo importância. Isto porque Jacó,
desde que cessara de altercar com Deus, tinha chegado à conclusão de que
não fora Deus que com a força do seu braço lhe impusera o sacrifício de
Isaac, mas de que havia sido ele próprio, Jacó, quem espontaneamente o
oferecera. Enquanto durou o primeiro martírio, tal ideia andava longe dele;
por essa época acreditava-se vítima de cruel injustiça. A proporção, porém,
que a dor diminuía e se ia fazendo o hábito, a morte fez valer suas
vantagens — isto é, a percepção que seu filho estava resguardado com todo
o carinho e sempre na bela idade de dezessete anos; então aquela alma
meiga e patética começou serenamente a julgar-se capaz do feito abnegado
de Abraão. Essa ideia brotara para honra de Deus e do próprio Jacó. Deus
não o havia privado monstruosa e ardilosamente do seu predileto. Ele se
limitara a tomar o que, conscientemente e com espírito heroico, lhe tinha
sido ofertado, a coisa mais cara que José possuía. Acredite-se ou não, Jacó,
dando a si próprio como testemunha do seu orgulho, quis fazer crer a si
mesmo que na hora em que deu licença a José para ir a Siquém executara o
sacrifício de Isaac e livremente por amor de Deus se desfizera do ser amado
com demasiada ternura. Jacó não acreditou sempre nisso. Algumas vezes
confessava a si próprio, contrito e banhado em vivas lágrimas, que nunca
teria sido capaz de, pelo amor de Deus, arrancar do seu coração o dileto.
Mas outras vezes prevalecia o desejo de crer em tal, e, quando isto se dava,
a questão de saber quem abatera José tomava-se relativamente sem
importância.
A suspeita, certamente e apesar de tudo, lá estava presente, a roer, mas
com mais brandura e não a cada hora; algumas vezes em anos posteriores
ficou sopitada e até adormeceu. Os irmãos tinham imaginado viver dali em
diante sob suspeita, e suspeita meio errada, mas a coisa não foi tão má
como temiam. O pai dava-se bem com seus filhos, não há negá-lo. Falava
com eles e com eles partia o pão, tomando parte nos seus negócios, nas suas
alegrias e penas domésticas. Encarava neles e só uma vez ou outra, em
intervalos cada vez mais espaçados, havia uma expressão sinistra nos olhos
do ancião, o olhar da suspeita e do erro, diante do qual os filhos, deixando a
meio o que iam dizendo, tinham de baixar os seus. Mas qual seria o
significado disto? Um homem baixa os olhos por saber que o outro suspeita
dele, o que não equivale a uma confissão de culpa. Uma escrupulosa
inocência e compaixão pelo homem aguilhoado pela desconfiança pode
também manifestar-se com um baixar de olhos. E assim uma pessoa afinal
se cansa das suas suspeitas. Acaba deixando-as em paz, sobretudo se a
confirmação delas, sem referência a fatos passados, não pode modificar o
futuro nem a promessa nem nada, no presente ou no futuro. Podiam os
irmãos ser o Caim de dez cabeças, podiam ser fratricidas, mas eram afinal o
que eram, filhos de Jacó, eram os elementos com que se tinha de contar,
eram Israel. Jacó dera para usar deliberadamente o nome que havia
conquistado lutando no vau de Jacó e por causa do qual coxeava de uma
anca, e usa—lo não só para a sua pessoa mas com um sentido muito mais
amplo. E por que não? Uma vez que era seu nome, ganho no bom combate
que durara até a aurora, podia fazer com ele o que lhe aprouvesse. Israel —
não só ele mas tudo o que a ele, o homem da bênção, pertencesse seria
chamado assim; desde o mais próximo até o mais remoto dos membros, de
todos os ramos e colaterais; a linhagem, a raça, os povos cujo número seria
como o das estrelas do céu e das areias do mar. As crianças às quais por
vezes permitia brincassem sobre seus joelhos eram Israel; assim as chamava
coletivamente e deste nome lançava mão de bom grado, já que não
conseguia recordar os nomes de todas elas. Entre os que mais lhe
escapavam estavam os nomes dos filhos das mulheres ismaelitas e
cananeias, inclusive a moabita e a escrava de Siquém. Mas também elas
eram “Israel”, e ainda mais antes de tudo e acima de tudo o eram seus
maridos, os onze. Privados de seu pleno número zodiacal por uma
prematura e jamais terminada luta fraterna, continuavam sendo ainda assim
uma grande estirpe — os filhos de Jacó, progenitores de inúmeras gerações
às quais por sua vez haveriam de legar seus nomes; homens poderosos
diante do Senhor, apesar do que cada um fosse no seu íntimo e do que cada
um tivesse na sua mente quando baixava os olhos. Que importava tudo
aquilo se, acima de tudo, continuavam sendo Israel? Porque Jacó sabia,
muito antes de se ter escrito — e escreveu-se unicamente porque ele o sabia
—, que Israel, ainda depois de haver pecado, continuava sendo Israel.
Contudo, em Israel houve sempre uma cabeça sobre a qual a bênção
desceu de preferência às demais. Assim foi com Jacó de preferência a
Esaú... e José estava morto. Sobre algum descansava portanto ou
descansaria a promessa quando Jacó lançasse a bênção, e desse viria a
salvação para a qual o pai procurava, desde havia muito, um nome.
Finalmente o havia encontrado, mas ninguém o conhecia, exceto a jovem
sentada a seus pés. Quem era o eleito entre os irmãos, aquele de quem viria
a salvação? Quem seria o abençoado, agora que a escolha já não seria
determinada pelo amor porque o amor tinha morrido? Não era Rubem, o
mais velho, que se precipitara como a caudalosa torrente e fizera o papel do
hipopótamo. Nem Simeão, nem Levi, pois pessoalmente não passavam de
lorpas inexperientes e tinham contra si façanhas inapagáveis, tendo-se
portado como pagãos selvagens em Siquém e como sátiros na cidade de
Hemor. Os três estavam amaldiçoados, até o limite em que Israel podia ser
amaldiçoado. Logo, tinha de ser o quarto, o que imediatamente se lhes
seguia. Tinha de ser Judá. Era este o escolhido.
ASTAROT
Saberia Judá que ele era o escolhido? Podia deduzi-lo se se pusesse a
contar nos dedos, o que frequentemente fazia; mas cada vez que nisso
pensava estremecia, perguntando a si mesmo angustiado se seria digno de
tal escolha. Pensava outrossim que esta podia arruinar-se nele. Já
conhecemos Judá; vimo-lo várias vezes quando José ainda se reclinava no
peito paterno, no meio do grupo de seus irmãos, com sua sofredora cabeça
de leão e seus olhos cervinos. Observamo-lo por ocasião da desgraça que
tocou a José. Em geral Judá não se havia saído mal de todo naquele
negócio; não tão bem, é certo, como Benjamim, que tinha ficado “em casa”,
mas quase tão bem como Rubem, que nunca desejou ver morto o rapaz e
que até descobrira o poço para depois poder tirá-lo de lá. Judá também teve
a ideia de tirá-lo do poço e dar-lhe assim a vida e foi ele quem sugeriu que
se vendesse o irmão, porque naqueles tempos já não sabiam comportar-se
como Lamech na canção. A desculpa era fútil, um mero pretexto, como o é
a maioria das desculpas. Judá havia percebido que o fato de se deixar o
rapaz perecer no poço não era nada melhor do que derramar seu sangue, e
portanto tinha querido salvá-lo. Não foi por culpa sua que chegou
demasiado tarde com sua proposta, quando já os ismaelitas tinham feito o
seu trabalho e libertado a José. Podia dizer em boa verdade que o seu
procedimento naquele funesto negócio havia sido relativamente decente,
pois que seu desejo foi que o rapaz saísse com vida.
Contudo, o crime o torturava mais do que àqueles que não tinham
defesa que aduzir. E por que não? Só os seres obtusos deveriam cometer
crimes, pois não sentem remorsos, vivem do dia para o dia e nada os
atormenta. O mal é para os broncos; todo aquele que tenha uma pouca de
sensibilidade deve evitá-lo, se lhe é possível, porque mais tarde não saberá
fazer-lhe frente. O fato de possuir uma consciência nada lhe adianta nessa
situação, pois ele é castigado exatamente por tê-la.
O crime cometido contra José e seu pai atormentava atrozmente Judá.
Sofria porque era capaz de sofrer, como se podia adivinhar nos seus olhos
cervinos e nas Unhas em redor das delgadas aletas do seu nariz e de seus
beiços carnudos. Aquele ato pendia-lhe sobre a cabeça como uma maldição
e o castigava com cruel adversidade, ou antes, a ele atribuía Judá todos os
males e adversidades que lhe sucediam, considerando-os como a paga pelo
que fizera, por aquele pecado em que tinha tomado parte. E isto é também
prova de uma consciência estranhamente arrogante. Sem dúvida Judá via
que os demais, que Dan ou Gadiel ou Zabulon, e por certo também os
ferozes gêmeos, continuavam ilesos, que nada lhes importava nem tinham
de que arrepender-se; o que podia ter-lhe ensinado que seus próprios males,
os dele mesmo e os de seus filhos, eram independentes do delito ou da
cumplicidade e provinham do seu interior. Não, Judá preferia pensar que
estava sofrendo sua punição, que era o único a sofrê-la, e olhava com
menoscabo aqueles que, mercê da sua pele espessa, permaneciam
incólumes. Tal é a peculiar arrogância da consciência.
Todos os tormentos que padecia traziam o sinal de Astarot, e não era de
estranhar que assim ocorresse porque ele sempre fora torturado pela
Senhora, estivera sempre debaixo da sua influência, em outras palavras,
tinha sido seu escravo sem amá-la. Judá cria no Deus de seus pais, em El
Elion, o Altíssimo, Shaddai, o Poderoso de Jacó, o Rochedo e o Pastor,
Jahwe, que, quando se sentia irritado, lançava fogo rapace pelo nariz e pela
boca. Judá queimava-lhe incenso e levava ao altar bois e anhos lactantes
sempre que o reputava necessário. Mas cria também nos Eloim do povo, o
que não era coisa muito reprovável, uma vez que não os servia. Quando
alguém observa durante quanto tempo ainda os mestres furiosos deviam ter
admoestado o povo de Jacó para que se afastasse os deuses estranhos —
Baal e Astarot — e não praticasse as cerimônias com os moabitas, não pode
deixar de sentir-se impressionado diante de sua obstinada instabilidade e de
sua tendência a reincidir e a desviar-se, até a última geração. Não deve,
portanto, surpreender-nos que um personagem tão primitivo, tão chegado
ainda às origens como Jehuda ben Jekew cresse em Astarot, que era uma
deusa sumamente popular, cultuada em toda parte com nomes diferentes.
Ela era a senhora de Judá, e este se achava debaixo do seu jugo: era essa a
dura realidade, dura para sua alma e para seu caráter de eleito, e como não
crer nela? E verdade que não lhe oferecia sacrifícios, não lhos fazia no
sentido estrito da palavra, a saber, não lhe levava oferendas de bois ou
anhos lactantes, porém a lança cruel da deusa o obrigava a sacrifícios mais
apaixonados e lamentáveis que ele cumpria, não com o coração leve, mas
só debaixo do látego de sua ama, enquanto seu espírito gemia diante de sua
própria lascívia, e cada vez que se soltava dos braços duma hieródula
escondia a cabeça envergonhado, perguntando a si mesmo com angústia se
seria digno da escolha.
Desde que eles todos juntos tinham apartado José do mundo, Judá dera
em considerar as pragas de Astarte mais como um castigo de sua culpa,
porquanto elas aumentavam, o perseguiam, não lhe deixavam paz nem
descanso. Pode-se dizer que ele já tinha expiado o seu delito num dos
infernos que existem — o inferno do sexo.
Alguém poderia sustentar que de todos os infernos existentes não é este
o pior. O que assim pensa não conhece a sede de pureza sem a qual não há
inferno, nem este nem nenhum outro. O inferno é para os puros; tal é a lei
do mundo moral. Porque o inferno foi feito para os pecadores, e só se pode
pecar contra a pureza própria. Se uma pessoa é como os brutos do campo,
não pode pecar, não conhece o inferno. E isto que está estabelecido, sendo
que o inferno é certamente habitado pelos melhores, o que não é justo; mas
que é afinal a nossa justiça?
A história do casamento de Judá e do de seus filhos e de sua
consequente destruição é excessivamente estranha e anormal e na realidade
incompreensível, de modo que só se pode falar do assunto com meias
palavras, e isto não apenas por delicadeza. Sabemos que o quarto filho de
Lia se casou moço e que o passo foi dado por amor à pureza, a fim de
assumir obrigações, de coibir-se a si mesmo e poder achar assim a paz. Mas
foi em vão; não havia ele contado com a deusa do látego. Sua mulher —
cujo nome não nos foi legado pela tradição, provavelmente porque a
chamaram pouco por ele — era simplesmente a filha de Sue, o cananeu que
Judá ficará conhecendo por intermédio de seu amigo e maioral de pastores,
Hiras, da aldeia de Odolam. Aquela mulher teve muitos motivos para
lágrimas, muito que perdoar, o que se lhe tornou um pouco mais fácil,
porque três vezes conheceu a alegria da maternidade. Não obstante, esta
alegria foi muito breve, porque os filhos que ela deu a Judá foram amáveis
somente no começo e mais tarde tornaram-se malvados. Sela, o mais moço,
nascido muito tempo depois do segundo, era ainda o melhor; era apenas
enfermiço, mas os dois mais velhos, Her e Onan, eram doentios e perversos;
doentios de maneira perversa e perversos de maneira doentia, conquanto
fossem ambos formosos de ver e de modos petulantes. Em resumo, foram
uma aflição em Israel.
Rapazes como esses, espertos e achacadiços, e todavia encantadores a
seu modo, estão fora de tempo e de lugar, são um sinal da precipitação da
Natureza, que nem sempre está em si e não sabe a quantas anda. Her e Onan
estariam bem adaptados numa sociedade antiga e decadente, num mundo
ancião de herdeiros irônicos, digamos — no simiesco país do Egito.
Achando-se, porém, tão próximos dos começos de um esforço dirigido ao
futuro e no espaço, foram um erro de tempo e de lugar e tiveram de ser
varridos da Terra. Judá, pai deles, devena ter reconhecido o fato sem culpar
a ninguém, exceto talvez a si mesmo, por tê-los gerado. Mas preferiu fazer
recair toda a responsabilidade da protérvia deles sobre a mãe, a filha de Sue,
e sobre si mesmo só enquanto considerava que tinha cometido uma loucura
tomando para esposa uma mulher nascida entre os idólatras de Baal. Da
destruição dos dois culpou a mulher, à qual os dera em casamento e a quem
acusou de ser um retrato daquela Istar, que extermina seus amados para que
morram por seu amor. Isto era injusto para sua própria esposa, a qual ao
cabo de pouco tempo morreu de pena, e sumamente injusto para Tamar.
TAMAR CONHECE O MUNDO
Tamar era a que se sentava aos pés de Jacó havia já muito tempo,
profundamente comovida com a expressão do rosto de Israel e pendente de
seus lábios. Nem uma única vez recostava o corpo a um espaldar; sentavase
muito ereta sobre um banquinho ou sobre um degrau do poço ou sobre
um nó de raízes, ao pé da árvore da sabedoria, com o pescoço esticado e as
costas côncavas e duas rugas de atenção entre as sobrancelhas aveludadas.
Vinha de um lugarejo situado numa encosta ensolarada, nas cercanias de
Hebron, e cujos moradores viviam de suas vinhas e cuidavam do gado
miúdo. Lá ficava a casa de seus pais, modestos granjeiros que mandaram a
moça a Jacó com espigas de trigo e queijo fresco, lentilhas e cevadinha.
Jacó pagou tudo aquilo com cobre. Assim chegara Tamar até ele com um
pretexto qualquer, porquanto na realidade a movia um impulso mais alto.
Ela era formosa a seu modo; não bonita segundo os cânones usuais, mas
bela de um modo austero e proibitivo; era como se estivesse indignada com
a sua própria formosura, e não sem razão, porque era dotada de uma atração
mágica que não deixava os homens em paz, sendo isto justamente o que
motivava as rugas entre suas sobrancelhas, Era alta e quase magra, porém
de uma magreza mais perturbadora do que qualquer corpulência, por forte
que esta fosse; portanto, o desassossego que Tamar provocava não era da
carne, mas de uma natureza que poderíamos chamar demoníaca. Tinha
olhos castanhos, eloquentes e maravilhosamente lindos, narículas quase
redondas e uma boca orgulhosa.
Não era de estranhar que Jacó se sentisse atraído por ela e que, era
recompensa da admiração que ela lhe devotava, a atraísse para junto de si.
Israel era já um homem idoso, que amava o sentimento e só desejava ser
capaz de voltar a sentir, e, para despertar em homens velhos como nós o
sentimento ou ao menos algo que vagamente e com suavidade nos recorde
os sentimentos da nossa juventude, requer-se alguma coisa fora do comum,
alguma coisa que nos dê força por sua admiração, alguém que, possuindo
uma atração como a de Astarte, se mostre espiritualmente ávida de nossa
sabedoria.
Tamar era uma buscadora. As rugas cavadas entre suas sobrancelhas
não denotavam apenas ira diante de sua própria beleza, mas também uma
preocupação e busca da verdade e da salvação. Em que lugar do mundo se
encontra alguém sem a preocupação de Deus? Essa preocupação acha-se
presente no trono dos reis e na cabana do mais humildes dos campônios.
Tamar a sentia também. A inquietação que ela produzia e angustiava e
exasperava exatamente por essa inquietação que nela produziam as coisas
mais altas. Qualquer pessoa teria acreditado que aquela aldeã se sentiria
satisfeita com o culto que a sua raça dedicava à natureza; mas não havia tal.
Esse culto vulgar não lhe bastava nem ainda antes de encontrar-se com
Jacó. Ela não podia satisfazer-se com os Baalim e os deuses da fertilidade,
porque sua alma adivinhava a existência de alguma coisa diferente e mais
alta no mundo, e a isso tendia ela. Existem almas com essa conformação, e
basta que surja alguma coisa nova, que se produza alguma mudança no
mundo para que sua sensibilidade solitária se sinta afetada e esteja disposta
a receber essa mudança. Sua inquietação não é por certo de primeira ordem,
não é como aquela do emigrante de Ur que o arrastava para o vazio, onde
nada havia, e o forçava a criar de si mesmo o novo. Não. Almas assim não
pertencem a esta categoria; se, porém, surge no mundo alguma coisa nova,
essa lhes perturba à légua os sentimentos e a sensibilidade, e elas devem
então percorrer um largo caminho até encontrá-la.
Tamar não teve de ir tão longe. As mercadorias que levava até a tenda
de Jacó, e pelas quais recebia o seu peso em cobre, sem dúvida nada mais
eram que um pretexto de seu espírito, um ardil de sua própria inquietação.
O fato é que foi ter com Jacó e agora se sentava frequentes vezes aos pés do
imponente ancião, subjugada ali pelo peso de suas histórias. Permanecia
muito empertigada, com os grandes olhos penetrantes levantados para ele,
tão fixa e imóvel em sua concentrada atenção que os brincos de prata que
pendiam de cada lado de suas faces encovadas não se moviam. E Jacó
falava-lhe do mundo, isto é, narrava-lhe suas próprias histórias que, na sua
intenção de instruir, apresentava audazmente como a história do mundo,
como i história dos ramos de uma árvore genealógica que se estendiam em
todas as direções, como uma história familiar surgida de Deus e por Ele
presidida.
Falou-lhe do começo, do caos e da antiga noite e de sua divisão pela
palavra de Deus; da obra dos seis dias e de como, por ordem sua. se enchera
de peixes o mar, e de aves aladas o espaço debaixo do firmamento do qual
estão suspensos grandes luzeiros, e de como a terra se cobrira de erva
virente e de gado, de répteis e de toda a espécie de animais. Repetiu-lhe a
enérgica ordem que Deus dirigiu a si mesmo, num plural folgazão, a
empreendedora proposta: “Façamos o homem.” E para Tamar tudo aquilo
era como se o próprio Jacó o tivesse dito e como se Deus (que em qualquer
circunstância e sempre era chamado simplesmente Deus, à diferença de
outros lugares do mundo), como se Ele devesse parecer-se com Jacó. E na
verdade não havia dito o próprio Deus: “à Nossa imagem e semelhança”?
Ouviu falar do jardim do Oriente em Éden e das árvores que nele havia, da
árvore da vida e da árvore da ciência; da tentação e do primeiro ataque de
ciúmes de Deus; de como Ele se sentira alarmado ante a possibilidade de
que o homem, que conhecia agora o bem e o mal, pudesse comer também
da árvore da vida e ser inteiramente como “Nós”. Por isso Aquele que tinha
feito o homem à sua imagem e semelhança se dera pressa em expulsá-lo e
em colocar o querubim com a espada chamejante em frente à porta. E
impôs ao homem o trabalho e a morte, a fim de que, não obstante haver sido
feito à “Nossa” imagem, não o fosse inteiramente, mas apenas um pouco
mais que os peixes, as aves e os brutos, porém conservando sempre a tarefa,
privadamente marcada, de continuar assemelhando-se-nos apesar de Nossa
ciosa oposição, tanto quanto fosse possível.
Tudo isto ouviu Tamar. Era uma história não muito coerente e cheia de
mistérios, mas era ao mesmo tempo grandiosa, como o era o próprio Jacó
ao narrá-la. Ouviu falar também dos irmãos que eram inimigos e de como
um matou no campo o outro. E dos filhos de Caim e de seus semelhantes e
de como se dividiram em três grupos sobre esta terra: os que habitavam em
tendas e apascentavam rebanhos; os que eram artífices em bronze e ferro; e
aqueles que se limitavam a tocar rabeca e assobiar. Esta era uma
classificação provisória. De Set, nascido para ficar no lugar de Abel, saíram
muitas gerações, até Noé, o sapientíssimo. A este último, Deus, frustrandose
a si próprio e a Sua ira aniquiladora, permitiu salvasse toda a criação, e
assim Noé sobreviveu ao dilúvio com seus filhos Sem, Cam e Jafet. Depois
disto o mundo tornou a dividir-se, porque cada um dos três deu origem a
inumeráveis gerações. Jacó conhecia-as a todas, sabia os nomes das tribos e
das suas moradas na Terra, e todos aqueles nomes caíam de seus lábios nos
ouvidos de Tamar. Imenso era o panorama da pululante raça e dos lugares
por ela habitados, mas tudo se unia no particular e na história familiar.
Porque Sem gerou Heber na terceira geração e este a Tare na quinta e assim
até chegar a Abraão, um de três, que foi por sua vez o único.
Porque a Abraão infundiu Deus desassossego no coração, para o Seu
bem, de modo que ele meditou incansavelmente sobre Deus para evocá-lo e
lhe dar um nome. Deus criou Abraão como Seu benfeitor e recompensou
com promessas de grande alcance a criatura que criara o Criador em
espírito. Deus fez com ele um pacto mútuo: que um se santificaria no outro.
E deu-lhe o direito de eleição, o poder de abençoar e de amaldiçoar, para
que ele pudesse abençoar o abençoado e amaldiçoar o amaldiçoado. E abriu
diante dele vastos horizontes nos quais se agitavam povos para todos os
quais seu nome seria uma bênção. E prometeu-lhe uma paternidade sem
limites, apesar de ter ele sido fértil em Sara até depois dos oitenta e seis
anos completos.
Então Abraão tomou a serva egípcia e gerou com ela seu filho Ismael.
Porém este engendro fora malsucedido, não na vereda da salvação;
pertencia ao deserto, e o primeiro pai não creu na afirmação de Deus de que
ainda teria um filho de sua verdadeira esposa, o qual se chamaria Isaac;
ouvindo a palavra divina, pôs-se a rir, pois já tinha cem anos de idade e com
Sara já não se dava o que se dá com o geral das mulheres. Mas fez mal de
rir-se, pois que veio então ao mundo Yitzchak, a vítima impedida, e de
quem foi dito desde o alto que havia de gerar doze príncipes. Isto não estava
rigorosamente certo, porque ás vezes Deus errava ao falar e nem sempre
suas palavras tinham o significado do que diziam. Não foi Isaac que gerou
os doze, a não ser indiretamente. Na realidade o gerador havia sido ele
mesmo, Jacó, de cujos solenes lábios pendia a jovem do país. Foi Jacó,
irmão do Ruivo, quem, com quatro mulheres, tinha gerado os doze, sendo
servo do perverso Labão em Sinear.
E Tamar ouviu uma vez mais a narrativa dos irmãos que eram inimigos,
do caçador ruivo e do meigo pastor; ouviu a fraude da bênção que pôs as
coisas em seus lugares, e a fuga do ladrão abençoado. Muito de passagem
soube de Elifaz, filho do deposto, e do encontro de Jacó com ele; porém
tudo isto foi modificado de forma que deixou Jacó bem colocado. Aqui
como em outros pontos o narrador procedia com cautela, como quando
falou da beleza de Raquel e do amor que ele lhe tinha. Modificando em
parte a história da humilhação sofrida às mãos de Elifaz, fazia-o em defesa
própria; mas, ao falar da mulher ternamente amada, fê-lo com prudência em
consideração a Tamar, porquanto estava de certo modo enamorado dela e
seus sentimentos lhe diziam que, em presença de uma mulher, não se devem
gabar excessivamente os encantos de outra.
Por outro lado lhe descreveu, em toda a sua magnitude e esplendor, o
grande sonho da escada que o ladrão da bênção teve em Luz, se bem uma
exaltação tão gloriosa talvez não soasse de todo razoável nos ouvidos de
quem não tinha conhecimento da tremenda humilhação que a precedera.
Tamar ouviu também, com todos os seus sentidos postos nele, a história do
herdeiro que trazia consigo a bênção de Abraão e tinha o poder de
transmiti-la a um que seria senhor sobre seus irmãos e a cujos pés os
nascidos do mesmo ventre tinham de prostrar-se. E ainda escutou as
palavras: “Em ti e em tua descendência serão benditas todas as gerações da
Terra.” E ela permaneceu imóvel.
Que não ouviu Tamar naquelas horas, que de histórias nanadas de forma
tão impressionante! Os catorze anos de servidão na tem de lama e ouro
passaram diante de seus olhos e depois os anos adicionais que completaram
os vinte e cinco, e como a esposa verdadeira e a que não o era e suas
escravas reuniram os onze, inclusive o filho predileto. E ouviu a narrativa
da fuga, da perseguição, e de como Labão os encontrou. Ouviu da luta com
o de olhos bovinos até o amanhecer, depois da qual Jacó coxeou toda a sua
vida. De Siquém e suas atrocidades, de quando os selvagens gêmeos
trucidaram o noivo e destruíram o gado e foram amaldiçoados... até certo
ponto. Da morte de Raquel a cento e vinte e cinco passos da pousada e da
pequena criatura nascida da sua morte. De como Rubem se precipitara
desconsideradamente e ele também foi amaldiçoado, na medida em que
Israel podia sê-lo. E logo depois a história de José — de como seu pai o
havia amado com demasiada ternura, mas, como alma forte e heroica que
era, tinha (sabendo muito bem o que fazia) enviado o predileto, oferecendoo
como vítima.
Este último “um dia” era ainda recente, e a voz de Jacó fazia-se trêmula
ao recordá-lo, ao passo que nos episódios anteriores, já carregados de anos,
sua voz se mantivera epicamente impassível solene e até jovial no tom e nas
expressões, mesmo nos trechos mais tétricos e pesados, porque aquelas
eram histórias de Deus, sagradas na narração. Era evidente, contudo, e não
podia ser de outro modo, que Tamar, que escutava com a alma tão sôfrega,
não somente se nutria daquele histórico, daquele longínquo e venerando
“sucedeu uma vez”. “Um dia” é uma expressão de face dupla. Pode
remontar a distâncias crepusculares, mas projeta-se também no futuro, e
não é menos solene quando trata do que há de ser como quando se refere ao
que foi. Muitos negam isto. Para eles “um dia” do passado é a única coisa
sagrada, o futuro é mera frioleira. Esses são devotos, mas não piedosos,
almas néscias envolvidas em nuvens, e a suas igrejas por certo não se
sentava Jacó. Aquele que não sabe honrar “um dia” no futuro não merece o
do passado, e mesmo a sua atitude em face do presente é errada. Tal é o
nosso credo, se podemos interpolá-lo nos ensinamentos que Jacó transmitiu
a Tamar — ensinamentos cheios de “um dia” de face dupla. E por que não
havia de ser assim, se ele a estava instruindo a respeito do mundo, e falar do
mundo é dizer “um dia” em ambos os sentidos, no conhecimento e na
presciência? Bem podia ela replicar-lhe agradecida, como o fez: “Não te
pareceu bastante, meu senhor, contar à tua serva o que foi, pois também lhe
tens falado do longínquo futuro.” Assim ele tinha feito inconscientemente,
porque todas as suas histórias desde o começo continham um elemento de
promessa, de tal modo que era impossível contá-las sem prognosticar.
De que falava Jacó a Tamar? Falava-lhe de Shiloh.
Seria totalmente falso supor que só no seu leito de morte, sentindo a
iminência da próxima dissolução, Jacó teria falado de Shiloh, o herói.
Naquele momento não sentiu influência alguma; o que fez foi proferir as
palavras sobejamente sabidas e preparadas, depois de tê-las considerado e
estudado com toda a atenção durante boa parte da vida, palavras às quais a
hora da morte apenas devia conferir nova solenidade. Referimo-nos às
palavras de bênção e de maldição ditas sobre seus filhos e à imagem da
promessa, a que deu o nome de Shiloh. Já na época de Tamar, essa imagem
tinha ocupado os pensamentos de Jacó, apesar de não haver falado dela com
ninguém a não ser com Tamar, em reconhecimento pela grande atenção que
ela lhe dispensava e porque com o resto da sua capacidade de sentir estava
enamorado dela. A quem ou a que se referia Jacó ao falar de Shiloh?
Era na verdade estranho e extraordinário como havia ele meditado tudo
aquilo para si mesmo! Porque Shiloh não era na realidade mais que o nome
de um lugar circundado de muralha, situado ao norte do país, onde a miúdo
os filhos da terra, depois de haverem combatido e saído vitoriosos, se
reuniam para repartir os despojos. Não era um lugar particularmente
sagrado, mas era chamado lugar de descanso ou sossego, pois isto significa
Shiloh: significa paz, significa recobrar o alento depois de uma luta
sangrenta. E uma palavra de bênção, tão adequada para uma pessoa como
para um lugar. Siquém, filho da cidadela, tirara seu nome do nome da sua
cidade. Do mesmo modo, Shiloh podia servir para um homem e filho de um
homem chamado portador da paz. Nos pensamentos de Jacó este era o
homem da esperança prometido naqueles primeiros e sempre renovados
votos e preceitos, prometido ao ventre da mulher, prometido na bênção de
Noé a Sem, prometido a Abraão, por intermédio de cuja descendência todas
as raças da Terra seriam abençoadas. Seria o príncipe da paz e o ungido que
reinaria de mar a mar e do rio até os confins do mundo, diante do qual
deveriam inclinar-se todos os reis, o herói ao qual deviam unir-se todos os
povos, o herói que um dia surgiria da descendência escolhida e ao qual o
trono de seu reino seria confirmado para sempre.
A este que devia vir chamou Shiloh. E agora empreguemos nossa
imaginação, na medida que nos for possível, para representarmos o velho,
dotado de tão opulentos meios de expressão e de visão, falando a Tamar
acerca de Shiloh durante aquelas horas e ligando os mais remotos começos
com o futuro mais distante. Sua linguagem era poderosa e estava prenhe de
sentido. Tamar, a única criatura considerada digna de escutar aquilo,
permanecia imóvel. Nem sequer observando-a com toda a atenção, podia-se
perceber o menor movimento de suas arrecadas. Tamar escutava a história
do mundo que nas coisas primitivas continha a promessa do porvir: era uma
vasta história, cheia de acontecimentos e ramificações, através da qual
corria o fio escarlate do prenuncio e da esperança desde “um dia” até “um
dia”, desde o mais remoto “um dia” até o futuro mais distante. Naquele “um
dia”, numa catástrofe cósmica de salvação, duas estrelas se lançariam em
chamejante ira uma contra a outra, a estrela da força e a estrela do direito, e
despedaçar-se-iam num choque de cujo estrondo ecoaria o Universo; depois
seriam uma só, e esta resplandeceria com um suave e poderoso fulgor para
sempre sobre a cabeça dos homens: a estrela da paz. Aquela seria a estrela
de Shiloh, a estrela do filho do homem, do filho da eleição, que tinha sido
prometido à raça da mulher e que esmagaria a serpente. Ora pois, Tamar,
que era uma mulher, que era a mulher, porque toda mulher é a mulher,
instrumento da queda e ventre da salvação, Astarte e a mãe de Deus —
Tamar permanecia sentada aos pés do homem-pai sobre o qual, pela astúcia
corretiva, havia caído a bênção e que podia transmitir essa bênção à
história, a um em Israel. Quem seria este? Sobre que fronte alçaria o pai o
corno da abundância, atochado de bênçãos, para ungir o seu herdeiro?
Tamar tinha dedos para contar. Havia três filhos que estavam amaldiçoados,
e o predileto, o filho da esposa verdadeira, tinha morrido. O amor já não
podia guiar o curso da herança, e, donde o amor se foi, só a justiça subsiste.
A justiça era o como do qual escorreria o óleo da unção sobre a fronte do
quarto. Judá era o herdeiro.
A MULHER RESOLUTA
A partir daquele momento, as rugas que se notavam entre as
sobrancelhas de Tamar tiveram outro significado. Já não falavam apenas de
sua ira diante de sua própria beleza, nem de sua busca e anelo, mas
envolviam também uma determinação. Vamos deixar bem claro o nosso
pensamento: Tamar estava resolvida, custasse o que custasse, a introduzirse,
por intermédio da sua feminilidade, na história do mundo. Era essa a sua
ambição. Naquela resolução inabalável e quase sinistra (há sempre um quê
de sinistro no inabalável) tinham encontrado saída suas aspirações
espirituais. Existem naturezas nas quais um ensinamento se transforma
instantaneamente numa resolução, ou melhor, só procuram o ensinamento
para alimentar sua vontade e dar-lhe um propósito. Tamar apenas
necessitava ser instruída sobre o mundo e sua finalidade para adotar a
resolução incondicional de associar sua natureza feminina a essa finalidade
e converter-se num ser histórico.
Esclareçamos este ponto. Não há quem não faça parte da história do
mundo. Pelo mero fato de ter nascido, cada qual deve, de uma forma ou de
outra, por fãs ou por nefas, contribuir com o seu óbolo para o
desenvolvimento do processo mundial. Contudo, muita gente se move na
periferia, sem ter consciência da história do mundo, sem participar dela,
modesta e no fundo não de todo descontente de não ser do número dos
atores mais conspícuos da cena universal. Tamar desprezava essa atitude.
Ainda bem não acabara de receber as instruções, tomou sua resolução, ou
melhor, deixara-se instruir para aprender que ela desejava e que não
desejava. Não queria mover-se na periferia. Essa moça do país tinha a firme
intenção de colocar-se na linha da promessa. Queria pertencer à família,
introduzir seu ventre na linhagem que conduzia, através do tempo até a
salvação. Ela era a mulher, a promessa viera à sua raça. Ela seria a mãe de
Shiloh, nem mais nem menos.
As rugas entre suas sobrancelhas se acentuaram. Já significavam três
coisas e vinha juntar-se agora um quarto significado: significavam irado e
invejoso desprezo pela filha de Sue, a esposa de Judá. Esta pateta estava já
na linha, ocupava um lugar privilegiado, sem nenhum mérito nem
conhecimento nem força de vontade (para Tamar estes dois elementos eram
um mérito); ela era uma nulidade dignificada pela história. Tamar tinha-lhe
aversão, aborrecia-a de uma forma feminina e consciente. Do mesmo modo
e com plena consciência teria desejado sua morte se esta tivesse tido algum
sentido; mas não tinha nenhum, porque a mulher já dera três filhos a Judá,
de maneira que Tamar teria de desejar também a morte dos três para repor
as coisas nos seus lugares e ensejar para si mesma uma oportunidade junto
do herdeiro da bênção. Neste caráter é que ela amava Judá e o desejava: seu
amor era ambição. Provavelmente nunca — ou nunca até então — uma
mulher amou ou desejou um homem prescindindo de tal forma dele mesmo
e tão inteiramente por causa de uma ideia, como Tamar amava a Judá. Para
o amor era uma nova base, em existência pela primeira vez: o amor que
provém não da carne, mas do pensamento, de sorte que bem poderíamos
chamar-lhe demoníaco, dando-lhe o mesmo nome que à inquietação que a
própria Tamar provocava nos homens, sem influência da sua forma carnal.
Tamar poderia ter conseguido Judá com a sua natureza de Astarte de
que em outras ocasiões ela se exasperava. Até gostaria de assim fazer, pois
sabia que ele era escravo da deusa e estava certa de que deste modo teria
êxito. Era, porém, demasiado tarde, quer dizer, demasiado tarde no tempo.
Ela chegara demasiado tarde; seu amor-ambiçào se dera fora de tempo e de
lugar. Já não podia introduzir-se neste fuzil da cadeia para se colocar na
linha, de maneira que era preciso dar um passo à frente ou então abaixo no
tempo e nas gerações; teria de mudar sua própria geração e dirigir seus
ambiciosos propósitos ao ponto em que teria preferido ser mãe. A ideia não
era difícil, porque, na mais alta esfera, mãe e amada foram sempre a mesma
coisa. Em resumo, teria de afastar seus olhos de Judá e pousá-los sobre seus
filhos, os netos da herança, os quais, fossem outras as circunstâncias, ela
desejaria suprimir para gerá-los ela mesma com melhor êxito.
No primeiro momento, como era lógico, concentrou-se unicamente no
primogênito, o jovem Her, por ser este o herdeiro. Sua posição pessoal no
tempo tornava muito possível a mudança de objetivo. Ela não era nem
jovem demais para Judá, nem excessivamente velha para Her. Todavia deu
o passo sem alegria. Sentia repulsa pela natureza enfermiça e degenerada
dos irmãos, não obstante os encantos que eles possuíam; porém sua
ambição acorreu em seu auxílio, porque do contrário ela a teria considerado
demasiado fraca. A ambição lhe disse que a promessa nem sempre tornava
o curso promissor ou o mais simpático; que às vezes costumava percorrer
um largo trecho duvidoso, indigno e até depravado, sem esgotar-se; que
nem sempre a enfermidade gerava por sua vez a enfermidade e que dela
poderia resultar um novo vigor que levasse ao caminho da salvação,
especialmente quando era gerada e desenvolvida por uma força de decisão
como a que Tamar possuía. Além disso, os rebentos de Judá eram varões
degenerados e nada mais. Tudo dependia da fêmea, dependia de que a
pessoa indicada soubesse introduzir-se no ponto mais fraco. A primeira
promessa se referia às entranhas da mulher e com isso nada tinham que ver
os homens.
Assim, para alcançar seu propósito, Tamar teve de subir novamente no
tempo, indo até a terceira geração; de outro modo, não seria possível atingir
seu desiderato. Verdade é que pôs em prática sua sedução de Astarte com o
rapaz, cuja reação foi, entretanto, infantil e viciosa. Her queria apenas
brincar com ela e quando Tamar opunha a isso a escuridão das suas
sobrancelhas, ele retrocedia e se mostrava incapaz de ficar sério. Certa
delicadeza a impedia de ir além e de pôr em prática esses ardis com Judá,
porque a ele Tamar queria na realidade ou teria querido; e, posto que Judá o
ignorasse, ela mesma o sabia e sentia vergonha de pedir-lhe o filho que ela
de bom grado lhe teria gerado. Por conseguinte foi ter com o chefe da tribo,
seu mestre, Jacó, explorando a fraqueza cheia de dignidade que o ancião
sentia por ela e que Tamar notara plenamente, sentindo-se com isso ufana,
resolvida a pedir-lhe seu neto para mando. Sentaram-se na tenda, no mesmo
lugar onde José tinha falado uma vez com o ancião a respeito da túnica
multicor. A tarefa dela era mais fácil que a dele.
— Mestre e senhor — disse-lhe —, grande e querido paizinho, escuta
agora a tua serva e inclina o teu ouvido à sua súplica sincera e ardente. Tu
me distinguiste e me fizeste grande entre as filhas do país; instruíste-me no
mundo e em Deus, o único Altíssimo; abriste meus olhos e ensinaste-me, de
tal modo que eu sou uma criação tua. Como me foi concedido achar favor
diante de teus olhos e como foi que confortaste tua serva e lhe falaste com
bondade? Oxalá o Senhor te recompense e te retribua e oxalá tua
recompensa seja perfeita no Deus de Israel, ao qual cheguei, conduzida por
tua mão, até encontrar-me agora a salvo debaixo de suas asas! Pois cuido de
mim mesma e de minha alma para não esquecer as histórias que me narraste
e para não apartar delas o meu coração enquanto viver. A meus filhos e aos
filhos de meus filhos, se Deus mos conceder, direi que não se destruam a si
mesmos, nem fabriquem imagem alguma de homem ou mulher, nem de
animal sobre a terra, nem de aves debaixo do céu, nem de répteis ou peixes;
nem levantem seus olhos e vejam o Sol, a Lua e as estrelas e reneguem de
Deus para adorá-los. Teu povo é o meu povo e teu Deus é o meu Deus. De
maneira que, se Ele me conceder filhos, estes não me hão de ser gerados
por um homem de um povo estranho. Um homem de tua própria casa
poderia, meu senhor, tomar uma filha da Terra, tal como eu era, e levá-la
para Deus. Porém, assim como sou agora, nascida de novo e feita à tua
imagem, não posso desposar um pagão que adora imagem de pau e de pedra
feitas pela mão de um artífice e que não podem escutar nem ver nem
cheirar. Contempla, pois, pai e senhor, o que fizeste comigo: fizeste-me fina
e delicada de alma, de tal modo que já não posso viver como vivem as
maltas dos ignorantes, nem casar-me com o primeiro pretendente, nem
entregar minha donzelice a quem adore um deus falso como em outro
tempo, na minha simplicidade, teria feito. Aí estão os inconvenientes do
aprimoramento e as dificuldades que consigo traz a elevação! Por isso não
leves a mal que tua filha e serva te aponte a responsabilidade que sobre ti
mesmo atraíste formando-a desse modo, e que te faça ver que agora estás
em dívida com ela, assim como ela o está contigo, e que agora te compete
pagar por tê-la elevado.
— O que dizes, minha filha, está ousadamente concebido e não deixa de
ter lógica. Não se pode deixar de aprovar tuas palavras. Mas dize-me quais
são os teus desígnios, porquanto ainda não os percebo, e confia-me os teus
pensamentos que ainda me são obscuros.
— A teu povo pertenço em espírito — respondeu Tamar. — Só de teu
povo posso ser na carne e em minha condição de mulher. Tu abriste meus
olhos; deixa-me abrir os teus. Um ramo cresce do teu tronco: Her, filho do
mais velho do teu quarto filho, que é como a palmeira junto às águas e
como uma cana esbelta no canavial. Intercede, portanto, diante de Judá, teu
leão, para que me dê por esposa a Her.
Jacó mostrou-se excessivamente surpreso ao ouvir isto.
— De maneira que é essa a intenção das tuas palavras e a isto eram
dirigidos os teus pensamentos? Na verdade que nunca eu o teria adivinhado.
Falaste-me da responsabilidade que pesa sobre meus ombros ao instruir-te e
agora me deixas preocupado por tua causa. Com efeito, posso falar ao meu
leão e fazer que minha palavra prevaleça diante dele. Mas como justificálo?
Bem-vinda és à minha casa, que te abre os braços com alegria para te
receber. Porém adestrei-te nas coisas de Deus para que te tomes infeliz? É
com pesar que falo mal de quem quer que seja em Israel, mas os filhos da
filha de Sue são má semente e inúteis diante do Senhor, e prefiro apartar
deles os meus olhos. Na verdade, vacilo muito em satisfazer teu desejo, pois
é convicção minha que os rapazes não são bons para o tálamo nupcial, pelo
menos não o são para ti.
— Para mim mais que para ninguém — disse ela com firmeza. —
Reflete nisto, meu mestre e senhor. Foi inexoravelmente decretado que Judá
tivesse filhos. E eles são como são; em todo caso, no âmago eles devem ser
sadios, uma vez que neles está a seiva de Israel. E não é possível prescindir
deles nem deitá-los à margem, a não ser que eles mesmos se afastem e não
sejam bem-sucedidos na prova da vida. E inevitável que eles, por sua vez,
tenham filhos, um deles ao menos, Her, o primogênito, a palmeira junto ao
regato. Eu o amo e com o meu amor o converterei num herói em Israel.
— Tu sim que és uma heroína, minha filha — tornou o ancião. — E em
ti confio para que leves a cabo o teu propósito.
E assim lhe prometeu interceder junto de Judá, seu leão, se bem que, ao
fazê-lo, seu coração estivesse embargado por sentimentos contraditórios,
pois amava aquela mulher com o pouco de paixão que lhe restava e sentiase
contente, por uma parte, de apresentá-la a um homem do seu próprio
sangue, mas ao mesmo tempo lamentava e sentia vergonha de que aquele
homem não fosse digno dela. Além disso, não sabia por quê, a ideia o fazia
de vez em quando estremecer.
“NÃO POR NOSSO INTERMÉDIO”
Judá não vivia com seus irmãos no bosque de Mambre, “na casa de seu
pai”. Desde que travara amizade com Hirão, pastoreava na planície, numa
várzea próxima a Odolam, e seu filho Her e Tamar celebraram sua boda,
disposta por Jacó, que mandara chamar seu quarto filho e fizera valer diante
dele sua palavra. Que motivos teria Judá para opor-se a ela? Dera ele o seu
consentimento com uma expressão torva, mas sem opor grande resistência,
e assim Tamar foi dada a Her como esposa.
Não é conveniente levantar o véu daquele matrimônio que nem sequer
em seus começos ninguém teve vontade de descerrar. A humanidade
sempre se expressou laconicamente acerca dos fatos, achando que não valia
a pena suavizá-los com escusas ou comiseração. Os fatores do fracasso que
estavam presentes nela eram, por um lado, a ambição de desempenhar um
papel na história, combinada com os dons de Astarte, e, por outro, a
fraqueza de um jovem incapaz de arrostar uma prova séria na vida. Faremos
bem em seguir o exemplo da tradição e declarar com toda a lisura e
simplicidade que o Her de Judá, pouco depois de celebrado o casamento,
morreu, ou como reza a tradição, o Senhor o matou. Sim — o Senhor faz
tudo e tudo que sucede pode ser atribuído a Ele. Foi o caso que o rapaz
morreu nos braços de Tamar, de uma hemorragia que de qualquer modo o
podia matar se não se tivesse afogado com o seu sangue. Para alguns talvez
seja uma consolação que ao menos não morreu como um animal, mas nos
braços de sua mulher, porém não deixa de ser desalentador imaginá-la
manchada com o sangue vital de seu jovem marido.
Depois que este morreu, ela se pôs de pé com as sobrancelhas
carregadas e imediatamente pediu por esposo a Onan, o segundo filho de
Judá.Na resolução daquela mulher havia sempre alguma coisa de pasmoso.
Dirigiu-se a Jacó e se lamentou diante dele; de certo modo acusou a Deus
diante de Jacó, de tal sorte que o ancião se sentiu seriamente embaraçado
com relação a Jah.
— Meu marido morreu — disse ela. — Her, teu neto, morreu num abrir
e fechar de olhos. Como é possível compreender isto? Como é que Deus
pode fazer semelhante coisa?
— Ele pode fazer tudo — respondeu Jacó. — Humilha-te diante dele.
Quando a ocasião o requer, Ele costuma fazer as coisas mais horrendas.
Porque, se bem refletes, isso de se poder fazer tudo que se deseja constitui
uma grande tentação. Há nisso vestígios do deserto. Trata de explicar desta
maneira a coisa e a ti mesma. As vezes Ele cai sobre um homem e lhe dá a
morte sem mais nem menos, sem nenhuma razão aparente. O que nos
compete fazer é simplesmente acatara sua vontade.
— Eu a acato no que diz respeito a Deus — volveu Tamar —, mas não
no que a mim diz respeito, pois não reconheço minha viuvez. Não posso
nem devo fazê-la. Uma vez que um caiu, o que vem depois deve ocupar seu
lugar, para que não se apague o meu fogo que ainda vive, nem desapareça o
nome do meu marido sobre a terra. Não falo por mim nem pelo que morreu,
falo em geral e para todos os tempos. Tu, pai e senhor, deves fazer
prevalecer tua voz em Israel e convertê-la em lei, dispondo que, onde há
irmãos e um deles morre sem deixar filhos, sua viúva não tome um homem
estranho de fora, mas seu cunhado a despose. E deverá confirmar o
primeiro filho que ela dê à luz com o nome de seu irmão defunto, a fim de
que seu nome não seja desarraigado de Israel.
— Mas e se não agradar ao homem tomar sua cunhada? — objetou
Jacó.
— Nesse caso — replicou Tamar com firmeza — ela se erguerá diante
do povo e dirá: “Meu cunhado recusa suscitar descendência a seu irmão e
prolongar seu nome em Israel e nega-se a casar comigo.” Então um dos
presentes intercederá diante dele. E se ele insistir: “Não quero tomá-la
como esposa”, ela o enfrentará na presença de todo o povo, tirará um dos
sapatos dos seus pés e cuspirá nele dizendo: “Assim deverão fazer com
todos os que recusem reconstruir a casa de seu irmão.” E seu nome será
Descalço.
— Assim ele por certo mudará de ideia — concordou Jacó. — Tens
razão, minha filha. Mais fácil me será fazer prevalecer minha palavra diante
de Judá, para que te dê Onan para marido, se eu falar de um modo geral e
me apoiar nas leis que proclamei ao pé da árvore da sabedoria.
Assim, por instigação de Tamar, estabeleceu-se o casamento entre
cunhados, transformando-se num assunto histórico. Aquela aldeã tinha
certamente queda para a história. Deixando de lado a fase da viuvez,
recebeu então como marido o rapaz Onan, conquanto Judá se mostrasse
pouco inclinado a esse arranjo ou matrimônio colateral, e a pessoa visada
muito menos. Judá, que dos campos de Odolam foi chamado a comparecer
diante de seu pai, se rebelou e discutiu largo tempo com este, dizendo não
ser aconselhável repetir-se com seu segundo filho a experiência que tão
funesta tinha sido para o primeiro. Ademais, Onan tinha apenas vinte anos e
mesmo no caso que fosse apto para o matrimônio, ainda não estava maduro
para ele, nem desejoso, nem disposto a realizá-lo.
— Se ele recusa reconstruir a casa de seu irmão, ela lhe tirará o sapato e
ele será chamado Descalço para o resto de seus dias.
— Falas, Israel, como se esse fosse um costume estabelecido, embora
só acabes de introduzi-lo... eu bem sei por conselho de quem.
— Deus falou pela boca da moça — respondeu Jacó. — Ele a trouxe
para mim para que eu a pusesse em contato com Ele e Ele pudesse falar por
seu intermédio.
Ouvindo isso, Judá não se rebelou mais e deu ordem para que se
realizasse a boda.
Está por baixo da dignidade de quem isto narra penetrar nos segredos da
alcova nupcial. De sorte que se limitará a acrescentar com toda a lisura e
simplicidade que o segundo filho de Judá, Onan, que era a seu modo um
rapaz bonito e agradável, bem que debaixo de certo aspecto duvidoso, tinha
uma grande personalidade. Estava arraigado nele um espírito de oposição
que equivalia a um juízo sobre si mesmo e à negação da vida. Não me refiro
à sua vida pessoal, pois que amava demasiado a si próprio e se pintava e
enfeitava como um casquilho. Contudo, no fundo de sua alma atirava um
enfático não a todo prolongamento de vida depois de si ou por intermédio
de si. Dizem que se sentiu irritado vendo-se impelido a ser esposo substituto
e a fundar uma descendência que não ia ser sua, mas de seu irmão. E
provável que, com palavras e no pensamento, ele tenha exposto a si próprio
o assunto dessa maneira; mas na realidade, para a qual as palavras e os
pensamentos não passam de meras paráfrases, todos os filhos de Judá
tinham o conhecimento inato de que a sua geração era um beco sem saída;
que, fosse qual fosse o caminho escolhido pela vida, este por nenhum modo
poderia ser aberto por eles mesmos, os três filhos. Não por nosso
intermédio!, diziam a uma voz, e não deixavam de ter razão a seu modo. A
vida e a procriação poderiam seguir a sua rota, que a eles pouco se lhes
dava, especialmente a Onan, cuja beleza e encanto não eram senão uma
expressão do narcisismo de um homem além do qual não prosseguia a
estirpe.
Obrigado a casar, resolveu zombar do ventre da esposa, mas não havia
contado com a força de vontade de Tamar nem com os recursos de Astarte
que enfrentaram sua perversidade como uma nuvem carregada enfrenta a
outra, produzindo no choque o raio, o golpe mortal. Onan sentiu-se
paralisado e desfaleceu nos braços dela de um momento para outro. Seu
cérebro deixou de trabalhar e ele morreu.
Tamar levantou-se exigindo imediatamente lhe fosse dado como marido
Sela, o mais moço dos filhos de Judá, que contava apenas dezesseis anos.
Se alguém julgasse que ela era a figura mais sensacional da nossa história,
nós não nos atreveríamos a discutir com ele.
Desta vez, porém, sua vontade não prevaleceu. O próprio Jacó vacilou,
ainda que só se antecipando às enfáticas objeções que Judá não tardou a
fazer. Chamavam-lhe leão, porém desta vez defendeu mais como leoa o seu
último cachorro, por muito ou pouco que este valesse, sem transigir nem
ceder um palmo.
— Nunca! — exclamou. — Como? Pretendes que ele também morra,
afogado em sangue como o primeiro, ou sem pingo de sangue como o
segundo? Deus o impedirá. Isso não há de ser. Acudi ao teu chamado,
Israel, vindo às pressas da planície de Ehesib, onde a filha de Sue deu à luz
este filho e onde agora ela jaz enferma. Ela sofre e se inclina para a morte,
e, se Sela também morre, então ficarei sem nada. Aqui não se trata de
desobediência, porque tu não me queres mandar neste assunto e só fizeste
uma insinuação vacilante. Eu, porém, não vacilo; digo resolutamente que
não, digo-o por d e por mim. Crê essa mulher que lhe darei o meu cordeiro
para que ela mo destrua? Ela é uma Istar que mata a quem ama, uma
devoradora da juventude e sua cobiça é insaciável. Além disso o último de
meus filhos é ainda um menino inexperiente, e a ela um cordeiro de nada
adiantará tê-lo nos braços.
Realmente ninguém teria imaginado Sela, ao menos por enquanto, no
papel de um marido. Mais parecia um anjo que um ser humano, arrogante,
imprestável de todo, imberbe ainda e sem voz de homem.
— Digo isso unicamente por causa do sapato e do resto — recordou-lhe
Jacó, trêmulo. — Sabes o que sucederá se o rapaz se recusar a reconstruir a
casa de seu irmão.
— Vou dizer-te uma coisa, meu senhor — replicou Judá. — Se essa
devoradora não se retirar e não vestir roupas de viúva, se não usar um luto
decoroso na casa de seu pai como convém a uma mulher que perdeu dois
maridos, e se não se comportar tranquilamente, então serei eu mesmo, como
teu quarto filho, quem lhe arrancará a ela o sapato na presença de todos;
acusá-la-ei abertamente de ser um vampiro e direi que a apedrejem ou a
queimem viva.
— Isto é ir longe demais na desaprovação da minha sugestão — disse
Jacó, escandalizado.
— Longe demais? E até onde irias tu se te arrebatassem Benjamim e
quisessem mandá-lo a alguma viagem muito arriscada? E afinal de contas
Benjamim não é teu filho único, mas apenas o mais moço. Tu cuidas dele
com o teu cajado e não o arredas da tua vista para que não se perca também
e mal o deixas ir até a estrada real. Pois bem, Sela é o meu Benjamim e eu
me nego a entregá-lo. Tudo em mim se revolta contra semelhante ideia.
— Vou fazer-te uma proposta justa — disse Jacó, impressionando-se
muito com este argumento. — Para ganhar tempo e não ofender
grosseiramente a jovem, tua nora, não repeliremos sua petição, mas
procuraremos convencê-la e fazê-la mais razoável. Vai ter com ela e dizelhe:
“Meu filho Sela é ainda muito criança e não está maduro para seus
anos. Conserva-te viúva em casa de teus pais até meu filho crescer e,
quando estiver crescido, to darei para que possa suscitar descendência a seu
irmão.” Deste modo imporemos silêncio a seu pedido durante alguns anos
antes que ela possa renová-lo. Talvez assim se acostume com a viuvez e não
o renove de todo. Ou, se o fizer, havemos de consolá-la dizendo, com mais
ou menos verdade, que o rapaz ainda não está maduro.
— Seja assim — disse Judá. — É-me indiferente o que iremos dizer-lhe,
contanto que eu não tenha de entregar aquele que é minha ternura e orgulho
ao abraço ardente de Moloch.
A TOSQUIA
E tudo aconteceu de acordo com as instruções de Jacó. Tamar recebeu
de cenho carregado o veredicto de seu sogro, encarando-o bem nos olhos;
porém cedeu. Ficou, pois, como viúva e mulher que deplora seus maridos,
em casa de seu pai, e nada se soube dela durante um ano, dois e até três. Ela
encontraria justificativa se, passados dois anos, renovasse o seu pedido; mas
esperou expressamente um terceiro para que não lhe fossem dizer que Sela
era ainda muito criança. A paciência daquela mulher era tão notável como
sua resolução. Aliás, parece que paciência e resolução são a mesma coisa.
Todavia, uma vez que Sela completara dezenove anos e alcançara a
plenitude de virilidade que lhe era concedida, ela dirigiu-se a Judá e filou:
— Expirou o prazo e chegou o momento de me dares teu filho como
marido e me entregares a ele como mulher, para que ele suscite
descendência a seu irmão e prolongue seu nome. Lembra-te do nosso ajuste.
Ota, antes de ter passado o primeiro ano da espera, Judá também tinha
ficado viúvo. A filha de Sue morrera de aflição ao ver que o mando se
escravizara a Astarte e também com a perda de seus filhos, e ainda porque
ele a acusara de culpada da perdição deles. Assim sendo, só lhe restava Sela
e menos que nunca estava Judá disposto a mandá-lo para a arriscada
viagem. Por isso respondeu:
— Ajuste? Jamais houve um ajuste, minha amiga. Com isto não quero
dizer que não vale uma palavra proferida pela minha boca. Não; não é
assim. Mas nunca pensei que insistirias depois de tanto tempo, já que a
minha palavra não foi mais que uma palavra de adiamento. Queres que te
tome a dar outra semelhante? Se assim é, dou-ta; porém não é necessário,
porquanto já deves ter-te consolado. Verdade é que Sela agora é mais velho,
mas muito pouco; em compensação tu estás agora muito mais distante dele
do que quando minha palavra te consolou. Podias ser sua mãe.
— Ah! É assim? — perguntou Tamar. — Queres indicar-me com isso
qual é o meu lugar?
— Na minha opinião, o teu lugar é em casa de teu pai, onde deves ficar
como viúva que és e mulher que guarda luto por dois maridos.
Tamar curvou-se e partiu. Agora, porém, vem o resto.
Não era coisa fácil desviar aquela mulher da sua rota, nem deixá-la à
beira do caminho para a posteridade. Quanto mais de perto a observamos,
mais ela nos surpreende. Tratava ela com muita liberdade sua posição no
tempo, descendo até os netos, aos quais amaldiçoava porque se
interpunham no caminho daqueles que ela desejava dar à luz. Resolveu
então mudar de geração pela segunda vez e retroceder, saltando ao membro
restante da geração de netos que se negaram a entregar-lhe para que
também perecesse ou a colocasse a ela e seu ventre na linha da
descendência. Estava resolvida a tudo, porque sua chama não podia
extinguir-se, nem ela toleraria que lhe fechassem as portas da herança de
Deus.
Eis o que sucedeu a Judá, filho de Jacó. Não tinham transcorrido muitos
dias depois que o leão defendera seu filho como uma leoa defende seu
cachorro, quando chegou a época da tosquia, acompanhada da festa popular
durante a qual pastores de ovelhas e guardadores de gado se reuniam para
comer e beber e oferecer sacrifícios. A festa era celebrada em diferentes
lugares. Essa vez foi nas montanhas de Timnath, aonde afluíram de toda
parte pastores e donos de currais para tosquiar suas ovelhas e divertir-se.
Judá subiu até lá com seu amigo Hirão, o odolamita, o mesmo por cujo
intermédio conhecera a filha de Sue. Levavam a intenção de tosquiar e
divertir-se; pelo menos, era essa a intenção de Hirão. Quanto a Judá, não se
sentia muito inclinado aos divertimentos. Vivia numa espécie de inferno,
como castigo por sua antiga participação em ações más, e a forma pela qual
seus filhos tinham perdido a vida era para ele também uma forma desse
inferno. Sentia-se, além disso, preocupado por ser escolhido para herdeiro
e, por causa disso, teria preferido não se divertir nem tomar parte em
nenhuma festa, pois, se alguém está condenado ao inferno, toda alegria
adquire um caráter infernal e a nada pode conduzir, a não ser a marear a
escolha. Mas como evitá-lo? Só os doentes do corpo estão dispensados de
tomar parte na vida. Se alguém está enfermo apenas do espírito, isto é
indiferente. Ninguém tal compreende; portanto é necessário desempenhar o
seu papel no mundo e ir vivendo como os demais. Por isso Judá se deteve
três dias na tosquia em Timnath, ofereceu sacrifícios, comeu e regalou-se.
De regresso a sua casa, viajou só; assim lhe agradava mais. Fê-lo a pé,
pois tinha um cajado de bonito castão, assim como se usam para caminhar e
não para castigar uma cavalgadura. Com este foi descendo pelas azinhagas
da montanha, entre vinhas e casais, caindo já os derradeiros resplendores
rubros do dia, que se retirava para o seu descanso. Estradas e veredas lhe
eram familiares; ali estava Enam, o lugar de Enajim, ao sopé das colinas,
por onde devia passar, a caminho de Ehesib e Odolam. A porta, os muros de
barro e as casas brilhavam com reflexos purpurinos sob o esplendor dos
céus aprazíveis. Junto à porta estava agachada uma figura. Ao aproximarse,
viu que se achava envolvida num ketonetpaspasim, a vestidura com que
se cobrem as tentadoras.
Seu primeiro pensamento foi: “Estou só.” O segundo: “Passarei de
largo.” O terceiro: “Que vá para o diabo! por que há de interpor-se a
kedeche, a filha do prazer, no meu pacífico caminho de regresso? Essas
coisas sempre acontecem justamente a mim. Seja como for, não me
importarei com elas, porque minha natureza é dupla: por uma parte, sou
homem ao qual sempre ocorrem essas coisas e por outra irrito-me por causa
delas, nego-me e passo furioso de largo. A velha cantiga de sempre! Será
possível que não deixe de ser cantada nunca? Assim cantam os escravos
acorrentados das galeras, assim sobe seu canto desde seus corações dolentes
até o remo. Assim gemi eu lá em cima e cantei a velha canção com uma
dançarina; portanto devia sentir-me saciado durante algum tempo ao menos.
Como se o inferno se saciasse alguma vez! Vergonhosos e absurdos e cem
vezes aborrecidos são os desejos que inspira! Que irá dizer ela e como há de
portar-se? O que vier depois de mim que a prove, se quiser. Eu seguirei de
largo.”
E parou.
— Salve a deusa! — disse ele.
— Que ela te dê vigor! — cochichou a mulher.
O anjo do desejo já havia baixado até ele e o sussurro da mulher fê-lo
estremecer de luxuriosa curiosidade.
— A quem esperas à beira do caminho? — indagou com os lábios
trêmulos.
— Espero um homem cheio de vontade e luxúria que partilhe comigo o
mistério da deusa — foi a resposta.
— Então, posso ser quase esse homem, pois vontade não me falta, ainda
que não goste da luxúria. Não procuro a luxúria, mas ela me procura. E no
teu oficio, parece-me, tampouco se deseja a luxúria, mas deve-se estar
contente quando outros o façam.
— Nós somos as que damos, mas se vem alguém que saiba dar, também
sabemos receber — respondeu ela. — Tens desejos de mim?
Judá colocou sua mão sobre ela.
— Espera. Que me darás? — disse a mulher detendo-o.
O filho de Jacó começou a rir.
— Em sinal do meu desejo e como vestígio da luxúria te darei um
cabrito do rebanho, para que te lembres de mim.
— Mas não o tens aí contigo.
— Hei de mandar-to.
— Assim me diz antes. Depois o homem muda e não se lembra da sua
palavra. Entrega-me um penhor qualquer.
— Dize qual queres.
— Dá-me teu anel, teu colar e o cajado que trazes contigo.
— Bem se vê que sabes cuidar da deusa — disse Judá. — Fica com
eles.
E cantou a canção com ela junto do caminho ao clarão purpúreo do
crepúsculo. Depois a mulher desapareceu por trás do muro e ele prosseguiu
sua jornada. Na manhã seguinte disse a Hirão, o pastor:
— Sabes como acontecem essas coisas. Na porta de Enajim, no lugar de
Enam, havia uma rameira do templo cujos olhos tinham um fulgor estranho
debaixo do ketonet. Mas, para que tantos rodeios entre homens? Faze-me o
favor de levar-lhe o cabrito que lhe prometi, para que me devolva os objetos
que com ela deixei — meu anel, meu cajado e meu colar. Leva-lhe um
robusto cabrão. Não quero ser ruim com a ruim criatura. Talvez que a
encontres sentada junto à porta; se lá não estiver, indaga da gente do lugar.
Hirão escolheu um cabrito diabolicamente feio e forte, com seus
chavelhos enroscados, o nariz fendido, a larga barbicha, e o levou até
aporta, ao pé de Enajim. Mas ali não havia ninguém.
— Onde está a rameira que se senta à beira da estrada? — perguntou. —
Onde se acha? Vós deveis conhecer as vossas meretrizes.
— Aqui não houve nem há nenhuma meretriz — responderam-lhe.—
Não temos nenhuma, pois somos um povo decente. Vai procurar noutra
parte a cabra para o teu cabrito, se não queres ver voar as pedras pelos ares.
Hirão foi contar a Judá o que ouvira. Judá limitou-se a encolher os
ombros.
— Se não a encontraste, dela é a culpa — disse ele. — Procurei pagar e
ninguém me pode censurar, conquanto eu tenha ficado sem as minhas
coisas. O cajado tinha um castão de cristal. Põe o cabrito novamente com o
rebanho.
E, dito isto, esqueceu-se do assunto. Todavia, três meses mais tarde se
tornou patente que Tamar estava grávida.
Foi um escândalo como a gente dos arredores não havia presenciado
igual havia muito tempo. Tamar tinha vivido como viúva, com seus trajes
de luto na casa de seus pais, e agora aquilo saía à luz e já não era possível
ocultar que se comportara com uma sem-vergonha, merecendo portanto a
morte. Os homens resmungaram rancorosamente, e as mulheres
vociferaram prorrompendo em mofa e maldições. Porque Tamar sempre
tinha sido arrogante e procedera como se fosse superior a todas. O clamor e
a grita não tardaram a chegar aos ouvidos de Judá: “Ouviste, ouviste?
Tamar, tua nora, comportou-se mal e está pejada das fornicações, e já não o
pode ocultar por mais tempo.”
Judá fez-se pálido. Seus olhos de cervo pareciam querer saltar das
órbitas e as aletas do seu nariz tremiam. Os pecadores costumam mostrar-se
extremamente sensíveis aos pecados alheios. Além disso, tinha repulsa da
mulher porque lhe consumira dois filhos e porque, por causa dela, ele
quebrara sua promessa relativamente ao terceiro filho.
— Ela cometeu um crime! — exclamou. — Que arda o céu sobre sua
cabeça, que a terra se transforme em ferro debaixo de seus pés! Deve ser
queimada viva! Talvez já merecesse a fogueira desde há muito, porém agora
seu pecado está à vista de todos. Cometeu uma abominação em Israel e
manchou seus vestidos de dó. Que a arranquem a força da casa de seu pai e
a reduzam a cinzas! Com seu sangue deverá lavar sua infâmia!
A largas passadas pôs-se à frente dos que haviam ido informá-lo e que
brandiam varas. No caminho juntaram-se-lhe outros, também agitando
varas, até se formar uma multidão impaciente que, dando assobios e
fazendo escárnio, chegou diante da casa da viúva, ao séquito de Judá.
Dentro ouviam-se os pais de Tamar soluçando e lamentando-se, mas dela
não se escutava som algum.
Três homens foram designados para sacar para fora a michela.
Enrijaram os ombros, endureceram os músculos dos braços, avançaram o
queixo e prepararam os músculos para tirar Tamar à força, amarrá-la a um
poste e queimá-la. Mas, passados alguns segundos, voltaram sem ela,
trazendo em troca alguns objetos. Um tinha um anel entre os dedos
estirados. O segundo, um bordão que segurava pelo meio, e o terceiro, um
colar cor de púrpura pendendo da mão.
Levaram aqueles objetos a Judá, que estava à testa da multidão, e
disseram-lhe:
— Recebemos a incumbência de te dizer o seguinte da parte de Tamar,
tua nora: “Do homem de quem são estas coisas estou pejada. Reconheceas?
Em tal caso, escuta: não sou mulher que se deixe destruir com seu filho,
filho do herdeiro de Deus.”
Judá, o leão, olhou os objetos, enquanto a multidão se agrupava em
redor dele, esquadrinhando-lhe o rosto. Até esse momento tinha estado
pálido de cólera; ao ver os objetos, foi pondo-se rubro como fogo até a raiz
dos cabelos e conservou-se mudo. De repente uma mulher começou a rir e
logo outra e depois um homem, que foram imitados por vários homens e
mulheres, até que todo o lugar pareceu estremecer com as gargalhadas que
prosseguiam interminavelmente. Agachavam-se para rir e depois, com a
boca aberta, erguiam a cara para o céu e exclamavam: “Com que então,
foste tu, hem, Judá? Ah! ah! ah! Bonitas coisas fez Judá com sua nora! Ah!
ah! ah! ih! ih! ih!”
E que disse a isto o quarto filho de Lia? Falou devagar, no meio da
turba:
— Ela é mais justa do que eu.
Disse somente isso. Depois baixou a cabeça e assim se afastou.
Seis meses depois, chegando a sua hora, Tamar deu à luz dois gêmeos
que vieram a ser homens poderosos. Ela destruíra dois filhos para Israel ao
descer no tempo; tornando a subir, restituiu-lhe, em troca deles, outros dois
incomparavelmente melhores, sobretudo Farés, o primeiro, que foi um
homem valoroso e teve esplêndida descendência. E na sétima geração foi
gerado outro, que veio a ser a personificação da valentia. Chamou-se Booz
e foi marido de uma mulher muito formosa. Chegaram todos a ser grandes
em Efrata e foram exaltados em Bathleem, porque seu neto foi Isaías, o
bethleemita, pai de sete filhos e de um pequeno que guardava o rebanho e
era moreno e tinha lindos olhos. Sabia também tocar alaúde e com sua
funda conseguiu dominar um gigante, lá pela época em que secretamente
havia sido ungido rei.
Todavia, tudo isto se encontra no futuro e pertence à grande história da
qual a história de José não é senão um interlúdio. Mas nesse interlúdio foi
intercalada para sempre a história da mulher que por nenhum preço esteve
disposta a ser deitada à margem e que com assombrosa tenacidade e manha
se introduziu na linha da descendência. Assim a vemos, alta e quase
sinistra, descer pelas encostas das suas colinas nativas. Com uma mão
apoiada no corpo e com a outra resguardando os olhos, contempla as férteis
planícies onde se quebra a luz que cai das nuvens ameaçadoras, irradiando
ondas de glória sobre a terra.
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